Para além do Norte e do Sul – Guilherme Braga

Uma cidade tão retratada, falada, cantada e cheia de clichês, o Rio é cheio das representações preguiçosas que acreditam ser capazes de sintetizá-lo, mas que só servem para preservar ideias ultrapassadas e guardar preconceitos. Um destes clichês é geográfico: o lugar comum de que a cidade é dividida entre norte e sul.
Essa ideia cai por terra quando você pega a Brasil e, ultrapassando Deodoro, percebe que não é mais possível ver o Cristo. O morro do Corcovado é um bom referencial pra quem quer entender a cidade: grosso modo, à frente dele está o Centro, à direita a Zona Sul e à esquerda a Norte. A Zona Oeste não tem o Redentor em seus horizontes.
Antigo Sertão Carioca, depois Zona Rural, essa terra gigante guarda mais da metade do território carioca e quase um terço da sua população. Antigo celeiro do Rio, a terra das laranjas e cereais ainda é vista por muitos como apenas isso: um sertão de onde se extrai aquilo que a terra dá. A visão míope, colonizadora na microescala urbana perpetua preconceitos, ignora desafios e desperdiça oportunidades.
A Zona Oeste carioca é muito maior do que os limites da ignorância; é Bangu e Barra, é fábrica e serviços. Condomínios onde jorra luxo, comunidades de onde a miséria ainda não foi erradicada, a Zona Oeste é um megashopping na Barra da Tijuca e é rua de comércio no Calçadão de Campo Grande. Acima de tudo é Bangu, onde o calçadão e o shopping vivem lado a lado. É fábrica que traz progresso e traz desgraça, tecnologia e chuva de prata.
Zona Oeste tem o maior bairro do Brasil: Campo Grande, que tem título de cidade e ousa ser metrópole. Mas também é a agricultura tradicional do Mendanha e do Rio da Prata, da Baía de Sepetiba e das Vargens. É a história imperial de Santa Cruz, as invasões coloniais de Guaratiba e da Baixada de Jacarepaguá.
A pujante e potente Zona Oeste às vezes emula em si a própria metáfora do Rio e seus conflitos, reproduz endogenamente o binarismo norte-sul que ela rompeu. Os contrastes entre Cosmos e Joá, Camorim e Camará fazem a riqueza da nossa terra. Cidade de Deus e Vila Kennedy trazem respostas, Américas e Cesário de Melo produzem apostas, e cada canto dessa terra faz um Rio novo.
Um Rio que impulsiona ferrovias, e com as Bandeiras – a avenida e o elevado – alcança seu antigo quintal dos fundos, que hoje é parque, playground, escritório; é fábrica e dormitório. Há tempos o Rio alcançou o Oeste e aposta nele para o futuro, errando e acertando. Quem continuar preso apenas ao norte e ao sul perderá o rumo da história; ficará desorientado.

Guilherme Braga Alves é bacharel em Relações Internacionais pela UFRJ. Cursa Mestrado em Políticas Públicas em Direitos Humanos no NEPP-DH/UFRJ e integra o Laboratório do Direito Humano à Cidade. Desenvolve pesquisas na área de Mobilidade Urbana e Direito à Cidade.

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